Velhos jornalistas, jovens jornalistas

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    Texto gentilmente cedido pelo jornalista Nei Manique

    Imagino que por ser Domingo de Ramos, a leitura do Evangelho começará hoje para os católicos com um nostálgico “naquele tempo”. Incrível como o ser humano atrela-se ao tempo e à nostalgia para de tempos em tempos recordar e resgatar boas lembranças. Vai se o tempo, elas nunca se vão. Coisa boa.

    Sou destes que se atrelam vez por outra e mesmo assim me acho capaz de me atualizar e conviver com novidades. Nessa semana, a manchete de um dos jornais de minha cidade inseriu o verbo “lacrar”. Os leitores estranharam o contexto. Alguém traduziu. Gíria nova. “Arrasar”. Salvei.

    Atualizar-se também tem disso. Ou sobretudo isso: não basta renovar o guarda-roupa, é preciso revitalizar palavras, expressões e noções. Hoje quando ouço a sentença “doa a quem doer”, por exemplo, penso logo naquela menina cheia de piercings, inclusive um na língua.

    Pela inquietação que lhe é peculiar, o jornalismo tem sido historicamente uma incubadora na tarefa de reciclar verbetes, prospectar e destacar novos hábitos. Só que algo estranho vem ocorrendo nos últimos anos. A reciclagem está perdendo as forças, resfolegando em parágrafos e títulos.

    Num destes sites nacionais, abra a página com notícias da área policial e conte. Em quantas a palavra “homem” aparece nos títulos? Homem morre em colisão, homem é atropelado, homem é baleado pela esposa. Que fim levaram motoristas, pedestres e maridos? Jazem em covas do vernáculo.

    A fadiga textual não cessa aí. Embora reciclar seja uma obstinação atávica na profissão, optamos por exumar cantilenas do tipo a vítima “veio a óbito”, segundo a “autoridade policial”, os assaltantes “empreenderam fuga”. Sem falar que os ladrões agora “anunciam” assalto e “subtraem” somas.

    À fadiga alia-se uma indisfarçável desídia na hora de escrever, prevalecendo o Ctrl C+V de fontes oficiais. Advogados “interpõem” recursos, delegados “representam pela” denúncia, magistrados “prolatam” etc etc e eis que surge, assim do nada, uma tal de “oitiva”. Dói, literalmente, nos ouvidos.

    Numa leitura afobada, minha crítica soa dirigida à nova geração de jornalistas. Nada mais falso. Ao contrário de colegas veteranos, não vejo jovens jornalistas acomodados à cadeira nem reféns de suportes tecnológicos. Neles e nelas distingo a mesma paixão e a mesmíssima inquietação que me atraíram lá atrás.

    O cotidiano enredado dos novos colegas, isto sim, me assusta. Rotinas, expectativas e frustrações agravam seu estresse numa escala exponencial em relação à minha “turma”. Um celular fora de área pode ser a antessala de um infarto. Eis aí uma geração que irá adoecer ainda mais precocemente. O pique e o famigerado “deadline” desta galera são outros. Minha “turma” não entende isso.

    Decorre talvez daí a ausência de uma autocrítica pertinente à profissão. Admitir que o texto de ontem ou da manhã de hoje poderia ser diferente é só um ponto de partida. Achar que está sempre ótimo, que nada precisa mudar para melhorar, a linha de chegada à mediocridade.

    Submetido no mês passado a uma cirurgia na mandíbula, perdi seis dentes e metade da capacidade da fala, mas me considero no lucro. Um amigo, colega, parceirão das antigas, teve uma costela “subtraída” nessa semana em Boston. Até novembro, quando um implante me devolverá a loquacidade costumeira, seguirei atropelando fonemas como quem optou por um piercing lingual.

    Hoje é domingo para benzer ramos e afastar raios, dizem. Ou dizia-se. Num tempo que de tempos em tempos me revisita e, coisa boa, volta a me atrelar.​