A história da Catarina na prisão

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    Setor de costuras da Catarina Estofados (Foto: Carlos Stegemann)

    Por Carlos Stegemann, jornalista e escritor

    Não é comum a oportunidade de ingressar em uma penitenciária, em especial para um jornalista e empunhando uma máquina fotográfica – salvo se entrar como condenado, mas aí a história é outra. Nas vezes em que tive acesso ao interior de estabelecimentos penais fiquei tenso, e não apenas pelos riscos inerentes – mas, sobretudo, porque a supressão da liberdade é a maior violência que o ser humano pode imputar ao seu semelhante. Não à toa, se tornou a penalidade para quem infringe a lei.

    Quando entrei, no final de maio último, na área das duas unidades penais de São Cristóvão de Sul, sabia que jornalistas não são bem-vindos, ainda que meu intento não fosse exatamente uma reportagem e sim elaborar o case para a Catarina Móveis, empresa do grupo Berlanda, que investiu no trabalho de detentos, produzindo estofados – e concorreria ao prêmio Empresa Cidadã da ADVB/SC. Mas nunca renunciei à condição de repórter e mesmo autorizado pela direção da empresa, acredito e aceito a natural desconfiança de quem dirige a instituição.

    Uma penitenciária em um país de terceiro mundo costuma revelar condições dramáticas de sobrevivência, e não só dos detentos. Os agentes prisionais e os familiares de todos os envolvidos igualmente sofrem pelo estado medieval das prisões brasileiras e também pela ação das quadrilhas e a corrupção do sistema. Em diferentes proporções, o dia a dia é um retrato do inferno nas prisões brasileiras, para todos os que nela trabalham ou frequentam.

    Presos da Unidade 2 mostram as almofadas produzidas

    O bom jornalismo manda louvar o bom exemplo e as lições clássicas da profissão ensinam a realçar o atípico. Neste cenário, o que vi no planalto central catarinense dá alguma esperança em reintegração social e bom uso dos recursos públicos. Visitei celas ocupadas, salas de aula, ambulatórios, consultórios e refeitórios; presenciei os detentos da área de segurança em diversos ambientes – inclusive em revistas pessoais e de suas celas. Conversei com detentos com e sem a presença de agentes (no segundo caso, em um parlatório). Acompanhei dois dias de trabalho, em várias unidades empresariais. Presos produzindo brinquedos e jogos para crianças e adolescentes; cabos de vassoura; peças de metalurgia; tubos de cimento e, é claro, estofados da Catarina.

    “Sem trabalho, não há dignidade. Faz a cruz ser mais leve. Aprendo um ofício e me preparo para voltar muito diferente” foi o depoimento de A.B.M., um jovem de 31 anos que desperdiçou sua vida atrás das grades, por crimes graves que o condenaram a 32 anos de reclusão. Já cumpriu oito anos e deve sair em quatro, considerando o bom comportamento e a remissão pelo trabalho.

    Entre os 830 presos das duas unidades (segurança média e semiaberto) 782 trabalham. Para o orgulho de Sidnei Lunelli, chefe de segurança, “à noite reina o silencia em nossas unidades. Os presos estão cansados e dormem, porque o dia seguinte começará cedo”. Consequência disso há oito anos não há uma fuga no regime fechado e as evasões no semiaberto (situações nas quais os presos têm direito de saída para visitar a família em datas especiais ou casos similares – e não retornam à Penitenciária) não ultrapassam 2% do total. “A paz que vigora em nossa penitenciária tem relação direta com o trabalho”, assegura Emerson Rodrigues, gerente laboral das instituições.

    Um detento que trabalha gera renda para si, sua família e para o fundo penitenciário, utilizado na própria unidade. Reforma do telhado, celas novas, pinturas – o ambiente é de constante melhoria nas penitenciárias de São Cristóvão do Sul, com as verbas obtidas pelo regime laboral. A limpeza sobressai: o campus da UFSC passa vergonha perto do asseio das amplas áreas externas e internas. Não há um papel ou uma bituca de cigarro no chão. Enquanto trabalha, parte do que ganha é dirigido à família; quando sai, o preso tem uma poupança que contribui até que obtenha um emprego e recomeçe a vida.

    Equipe da Berlanda na fábrica Catarina

    Há muita polêmica quando o assunto é reintegração social de presos, mas uma só certeza: o trabalho é o caminho mais eficiente. “Ganham os presos, ganha a penitenciária com a segurança e a paz, ganham as empresas que aqui investem. Porém ninguém ganha mais do que a sociedade”, sentencia Vladecir de Souza, diretor das instituições.

    Em minhas horas de convivência e circulação fui muito bem recebido pela direção e pelos agentes dos estabelecimentos, que agiram com naturalidade e confiança mesmo em áreas mais críticas das unidades. Fiz mais de 90 fotos. Essa mesma naturalidade se estende aos funcionários da Catarina, que se relacionam de forma amistosa e respeitosa com os detentos que nela trabalham.

    Por fim: o case da Catarina conquistou, merecidamente, o Prêmio Empresa Cidadã ADVB/SC 2017, o mais importante reconhecimento em responsabilidade social do estado.