Um dia o pessoal há de recuar no ‘voltar atrás’

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    Por Carlos Stegemann

    A esperança é uma das fortes virtudes humanas, porque confere aos mortais uma capacidade de sobreviver mesmo diante de grandes ocorrências, naturais ou geradas pela perversidade de seus semelhantes. Na Idade do Gelo o Homem de Cro-Magnon suportou um clima radicalmente adverso e certamente todas as noites sonhava com o amanhecer primaveril. Que, afinal, um dia veio… Na II Guerra Mundial, os judeus que conseguiam sobreviver nos campos de concentração, mesmo sob as mais infames condições, renovavam a esperança de retornarem a uma vida digna. Milhões deles não tiveram essa chance. Todavia o conflito também teve fim e, a parte os eternos traumas, outros tantos retomaram suas vidas.

    Nossa Senhora da Gramática carrega em si toda a esperança possível, inclusive porque o verbete, no Aurélio, também significa “fé, confiança em conseguir aquilo que se deseja”. A santa protetora da língua vernácula tem plena convicção de que o bom uso do idioma está ao alcance dos profissionais de comunicação e de todos os que utilizam o português como ferramenta diária, de políticos a professores.

    Apesar de misericordiosa, a virtuosa mulher sofre com as agressões (perfeitamente evitáveis) à língua, praticadas por quem mais deveria zelar pela correção. ‘Voltar atrás’ está entre as expressões que desafiam sua paciência. “A Coreia do Sul voltou atrás na decisão de suspender as importações de carne do Brasil” – frase repetida por muitos cardeais do jornalismo brasileiro, sem que tamanho disparate causasse rubor nas faces! “O prefeito voltou atrás e não vai aumentar as tarifas do transporte coletivo” – afirmação que já foi manchete em jornais de Floripa. “O árbitro voltou atrás e não marcou o pênalti” – algo comum nas locuções esportivas, de qualquer região e padrão.

    Diante da incompatibilidade entre o verbo e o advérbio, por serem absolutamente redundantes, há uma razoável quantidade de opções – como recuar, retroceder, reconsiderar, ceder etc. Basta escolher pelo contexto. Nas artes, movidos pela licença que têm, os criativos fazem bom uso daquilo que soa (legitimamente) como inútil no bom português – e um exemplo notável foi a série de filmes de Robert Zemeckis: ‘De volta para o futuro’!

    E onde entra a inabalável esperança de Nossa Senhora da Gramática? Bem, ela conta que conviveu muitos anos com a confusa definição de que o juiz de futebol “descontava” o tempo de jogo ao final dos regulamentares 90 minutos. Um absurdo linguístico e cronológico. Os árbitros sempre acrescentavam minutos ao final de cada período de 45 minutos, por conta de paralisações. Esse vício de linguagem persistiu por muito tempo – mas mudou. Nenhuma emissora de TV ou rádio, veículos impressos ou portais proferem essa asneira nos tempos atuais.

    Portanto, focada na língua, mas sem perder o bom humor, Nossa Senhora da Gramática acha que um dia o pessoal há de recuar no ‘voltar atrás’.

    Amém!